Pode o administrador cobrar a declaração de encargos de condomínio?
A Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, que procede à revisão do regime jurídico da propriedade horizontal, introduziu a “declaração de dívida do condómino” ou “declaração de encargos de condomínio”:
a) Nos termos do Artigo 1424.º-A, “o condómino, para efeitos de celebração de contrato de alienação da fração da qual é proprietário, requer ao administrador a emissão de declaração escrita da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à sua fração, com especificação da sua natureza, respetivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respetiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento” e, ainda, “a declaração (…) é emitida pelo administrador no prazo máximo de 10 dias a contar do respetivo requerimento e constitui um documento instrutório obrigatório da escritura ou do documento particular autenticado de alienação da fração em causa, salvo o disposto no número seguinte”;
b) Nos termos da al. q) do n.º 1 do Artigo 1436.º, o Administrador passa a ter como função “emitir, no prazo máximo de 10 dias, declaração de dívida do condómino, sempre que tal seja solicitado pelo mesmo, nomeadamente para efeitos de alienação da fração”.
Com este dispositivo, pretende-se:
a) Assegurar a informação do adquirente quanto aos encargos de condomínio em vigor à data da aquisição;
b) Incentivar o vendedor à regularização de eventuais dívidas, antes da transmissão do imóvel, evitando situações de “deserção” dos devedores e de acumulação de dívidas imputadas a anteriores proprietários das frações autónomas;
c) Indiretamente, assinalar ao Administrador a iminência de mudança de proprietário da fração.
Passando a ser uma nova função do Administrador, colocam-se novas questões às administrações profissionais de condomínios, gerando-se polémica acerca da cobrança da emissão da declaração. Partimos do reconhecimento da utilidade deste instrumento noutros países europeus, há vários anos, para sustentar a resposta a esta questão.
1) A experiência de outros países europeus
a) Espanha¹
A declaração de inexistência de dívidas (“declaración de deuda“) é obrigatória desde 1999, no ato público de transmissão da fração, a qualquer título que seja, oneroso ou não. Desde 2013, em caso de ocultação de dívidas pelo vendedor, a fração responde pelas dívidas vencidas na anuidade em curso e nas três anuidades anteriores, com direito de regresso do comprador sobre o vendedor. O “Consejo General de Colegios de Administradores de Fincas” fornece uma plataforma para a emissão das declarações, interligada com as plataformas notariais.
Deixou de ser publicado em 2009 o barômetro indicativo de honorários propostos pelos Colégios provinciais. O valor usualmente praticado oscila entre os 35 e os 50 €, cobrado ao vendedor.
b) França²
A declaração (“état-daté”) é obrigatória desde 1965 em caso de transmissão a título oneroso. Caso se estabeleça a existência de dívidas ao condomínio, o notário procede à retenção do respetivo valor, para ser entregue ao condomínio.
Enquanto prevalece noutros países o princípio da liberdade na fixação dos preços, os honorários do Administrador foram limitados, em 2020, ao valor de 380,00 euros, cobrados ao condómino vendedor, independentemente do número de frações transmitidas. Com efeito, as associações de defesa dos consumidores reclamavam o caráter abusivo de valores que chegavam a atingir os 700,00 euros por declaração.
c) Itália³
A declaração (“liberatoria condominiale“) está prevista no Código Civil. Mesmo não sendo de apresentação obrigatória nos atos de transmissão, é usualmente solicitada pelos notários. Independentemente da declaração, o adquirente obriga-se solidariamente com o vendedor quanto aos encargos ordinários (não aos extraordinários) do ano corrente e do ano anterior.
É habitualmente cobrado um valor entre 50 e 70 euros pela declaração, que reporta ao ano em curso e ao ano anterior.
A comparação poderia ser alargada à Alemanha, Países Baixos, etc., para demonstrar que as declarações de encargos ou dívidas de condomínio, produzidas para efeito de atos de transmissão onerosa de frações, importam geralmente a cobrança de um serviço pelas administrações profissionais, aos condóminos vendedores.
2) Justificação da cobrança da declaração ao condómino vendedor
Relevam para a cobrança do serviço de emissão da declaração, ao condómino vendedor, as justificações já aceites e estabilizadas noutros países europeus:
a) O contrato de compra e venda é um ato privado, sendo igualmente privado o ato da emissão da declaração, à margem das relações entre o Administrador e o Condomínio. Nesse sentido, a Audiencia Provincial de Girona (Sección 1ª de 6-10-2004) decidiu, por exemplo, que “se tal certificado se emite no interesse do transmitente da fração que se pretende vender, é claro que quem deve pagar os honorários a que possa ter direito o Administrador apenas pode ser o vendedor”. Assim, o custo da emissão da declaração não deveria ser incluído nos honorários convencionados entre o Administrador e o Condomínio, sendo um serviço prestado pelo Administrador ao condómino vendedor.
b) A Autoridade para a Concorrência francesa ⁴ admitiu as posições apresentadas pelas associações profissionais, designadamente: (i) a declaração acarreta uma responsabilidade acrescida para o Administrador, que pode ser responsabilizado por erros ou por declarações falsas; (ii) os pedidos de emissão de declarações perturbam o fluxo e as rotinas de trabalho dos profissionais; (iii) a emissão de uma declaração no decurso do ano, sem contas aprovadas pela assembleia de condóminos, implica um trabalho acrescido para o Administrador, como a conferência dos pagamentos efetuados pelo condómino, a verificação da inexistência de processos de cobrança nos quais possam ter sido reclamados valores que ainda não foram transpostos para a conta corrente do condómino, por exemplo; (iv) a elaboração e a assinatura da declaração mobiliza a intervenção de pessoal qualificado para o efeito (técnico de contas, assinatura qualificada do responsável da empresa).
c) A liberdade de estabelecimento e de prestação de serviços, consagrada pelo direito europeu, não colide, quanto à cobrança da emissão da declaração, com a proteção do consumidor, desde que seja observado um princípio de proporcionalidade que os valores em causa não parecem violar, atendendo ao negócio imobiliário – transmissão onerosa – para o qual a declaração é produzida.⁵
d) Os documentos instrutórios para a compra e venda de frações – entre os quais passa a constar a declaração emitida pela Administrador – já importam, em Portugal, custos para o vendedor, como sejam: a certidão permanente predial, a certidão da licença de utilização, o certificado energético ou a ficha técnica da habitação.
Em conclusão, é comummente aceite e perfeitamente razoável que, em contrapartida da emissão da declaração de dívida ou de encargos de condomínio, seja devida ao Administrador uma remuneração, ficando a mesma a cargo do condómino vendedor. Não se vislumbra motivo para um entendimento diferente em Portugal.
Observatório da Propriedade Horizontal
E-Mail: oph@anpacondominios.pt
¹ Ley 49/1960, de 21 de julio, sobre propriedad horizontal, modificada pela Ley 8/1999, de 6 de abril.
² Décret n° 2020-153 du 21 février 2020, pris pour l’application de l’article 10-1 de la loi n° 65-557 du 10 juillet 1965.
³ Articolo 1130 – n.º 9 – Codice civile e Articolo 63 – Disposizioni per l’attuazione del Codice Civile e disposizioni transitorie.
⁴ Autorité de la Concurrence, Avis nº 20-A-01 du 14 janvier 2020.
⁵ A este propósito, veja-se a Décision n. 441005 do Conseil d´État francês, que analisa a limitação do valor dos honorários por referência às Diretivas 2006/123/CE e 2005/36/CE, relativas aos serviços no mercado interior e ao reconhecimento das qualificações profissionais, respetivamente.